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Medicina de dados, uma questão para a saúde coletiva?

Paschoalotte, Leandro Módolo ; Dias, Thais Machado

Ciência & Saúde Coletiva, 2023-02, Vol.28 (2), p.657-658 [Periódico revisado por pares]

Rio de Janeiro: Associação Brasileira de Saúde Coletiva

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Citações Citado por
  • Título:
    Medicina de dados, uma questão para a saúde coletiva?
  • Autor: Paschoalotte, Leandro Módolo ; Dias, Thais Machado
  • Assuntos: Epidemiology ; Epistemology ; PUBLIC, ENVIRONMENTAL & OCCUPATIONAL HEALTH
  • É parte de: Ciência & Saúde Coletiva, 2023-02, Vol.28 (2), p.657-658
  • Descrição: Os sintomas sociais, políticos, econômicos e éticos aturdidos pela atual crise sanitária são evidentes e, hoje, vemos ecoar a defesa da “refundação”1 e “reconstrução”2 do SUS. Sabemos, contudo, que tal reconstrução não pode existir sem um expediente que revisite de modo crítico questões fundantes da Saúde Coletiva de modo que a investigação do passado descortine as possibilidades e/ou impedimentos inscritos no presente. Com isso em vista, o livro O ocaso da clínica: a medicina de dados, escrito pelo médico e doutor em bioética Luiz Vianna Sobrinho, é certamente um disparador cujo propósito vai ao encontro dos nossos desafios, pois busca ir do passado ao futuro trazendo algumas questões pertinentes para reconstruirmos o SUS. Embora de expediente generalista, ou talvez seja, justamente em razão do voo abrangente, o conjunto de hipóteses tecidas separadamente e, ao fim, orientadas para desanuviar as faces de um mesmo objeto, a “medicina de dados”, a obra de Vianna coloca de modo corajoso três questões que a faz de urgente leitura e que merece nossa reflexão. A primeira das questões, desenvolvida no Capítulo 1, é provavelmente a mais polêmica. Se se tratava de se contrapor a “famigerada biomedicina hospitalocêntrica” como uma “racionalidade médica” própria ao modelo econômico industrial-ocidental do capitalismo, segundo Vianna, o que fez a Reforma Sanitária (RS) foi optar por uma contraposição que jogou mais pesos no front “político” do que propriamente “científico”. A RS teria renunciado à luta pelo “poder da ciência médica” e seu desenvolvimento3(p.50), tornando-se epistemologicamente insuficiente para superar o “núcleo firme” da prática médica: a “anatomia patológica”. Em verdade, sem uma definição clara da ontologia do seu saber, ora voltada para “saúde”, ora “assistência”, ora “qualidade de vida”, ora “dano ao corpo”, ora “determinantes sociais” etc., a RS teria se conformado em um “modelo científico fraco”3(p.22) frente à biomedicina. O resultado então teria sido que a medicina “ficou à mercê da influência que os fatores sociais da economia de mercado deram à essa ciência”3(p.50); quando na realidade, defende o autor, a “missão” deveria ter sido a disputa pelo desenvolvimento de tecnologias médicas e hospitalares “com a visão coletiva do SUS”4 . A segunda questão, apresentada no capítulo “A medicina gestionária: a chegada da cultura do capital financeiro”, trata da profissão médica ao longo das últimas décadas, em especial, o impacto da introdução das tecnologias médicas no aspecto subjetivo da medicina. Fazendo eco ao seu livro anterior, Medicina Financeira: a ética estilhaçada5, para o autor, não estaria correto debitar à incorporação das tecnociências as responsabilidades das principais transformações no saber e fazer médico. Em contraponto, defende ele, teria sido a “cultura de gestão” e a “linguagem da burocracia financeira” conformadas na “abstrata evidência epidemiológica” os fatores que mais mudaram o pensar médico e sua autonomia3(p.84-113). Poderia se dizer que a “ideologia do capital financeiro na saúde” e o managed care alterou a prática médica mais do que os três séculos de descobertas tecnológicas que nos separa da medicina medieval. A terceira e última questão, arrematada no capítulo que dá nome ao livro, o autor volta-se diretamente para a atual transformação tecnológica e seus impactos. Com o avanço da inteligência artificial (IA), implicada na coleta, armazenamento e processamento de dados, Vianna defende que a prática médica estaria à beira de uma “mudança copernicana”3(p.140). A “disrupção” frente ao “modelo epistêmico da anatomia-patológica”3(p.133), ao contrário do que pretendia a RS, viria da agenda da indústria farmacêutica, de insumos tecnológicos e gadgets, da vanguarda biotecnológica, das seguradoras e de alguns acadêmicos3(p.130); e ela seria a “medicina de dados”. Nela o “trabalho clínico” será substituído por um “sistema autômato de IA” e o paciente será convertido em um “pacote de dados”3(p.134). Modelo, portanto, que rompe com a biomedicina que vimos até agora, mas que “transformará em parâmetros totalmente objetivos [os dados] todo o substrato para decisão e domínio da saúde e da doença pelos limites estritos da ciência biológica”3(p.83). A despeito dos possíveis contra-argumentos às hipóteses defendidas por Vianna, consideramos que tais questões vêm ao debate como “gatilhos” importantes para reconstruirmos o SUS. O primeiro tem sua potência na felicidade diagnóstica sobre a fragilidade epistêmica da RS. Tanto feliz que, ao seu modo, Maria C. Donnangelo6 já havia sinalizado em 1984. Sendo breve, no debate sobre epidemiologia “convencional” e “social”, a sanitarista dizia que a “epidemiologia social” é passível de críticas “exatamente” “por não ter ainda conseguido dar conta de um conceito alternativo de doença”, consequentemente, por permanecer sob “um conceito que está montado na biologia”6(p.70). Isso posto, concordarmos com Vianna neste aspecto é também retomar Donnangelo ao dizer “o que se sabe não é o necessário para saber o que se deve saber”6(p.82). E, portanto, refundar o SUS talvez dependa também de um longo debate sobre as fragilidades epistêmicas do nosso projeto. Outro ponto em que somos interpelados com felicidade é o fato de que a “disrupção tecnológica” não fará todo o jogo sozinha. Ao contrário, sua força vem porque ela está em consonância com a agenda econômico da Medicina Baseada em Valor (MBV). A gestão corporativa do capitalismo financeiro, diz ele, “une-se e embaralha-se à gestão clínica, num processo de simbiose” que submete a medicina ao “valor” “objetivo que vão compor as metas clínico-financeiras de médicos e gestores”3(p.116). E o substrato “objetivo” que possibilita “a dinâmica dos processos dessa gestão clínico-financeira dos resultados médicos”3(p.117) é justamente o “dado”. Podemos dizer, portanto, que a MBV é o modelo de gestão para a “medicina de dados” ao mesmo tempo em que esta é a condição para implementação efetiva daquela. E concordarmos novamente com Vianna nos inscreve em outra questão. Em alguma medida as suas preocupações vão ao encontro da defesa de Carlos Gadelha de reconstrução do SUS em tempos de reestruturação do Complexo Econômico-Industrial da Saúde. O economista defende a necessidade de superarmos o “reducionismo” que historicamente atravessou o sanitarismo brasileiro, a saber: o escanteio da pauta da produção e inovação em ciência e tecnologia para todos os níveis de atenção à saúde7 . Isto quer dizer que, defendem ambos, cada qual ao seu modo, devemos disputar os sentidos das novas tecnologias médicas a luz dos princípios da RS, pois se cometermos os erros do passado “em breve na nossa Atenção Primária será como atendimento de caixa-eletrônico”4 . Pelas razões expostas acima, o livro O ocaso da clínica: a medicina de dados vem em ótima hora ao acervo crítico da Saúde Coletiva, com um conjunto de questões disparadoras para refletirmos e refundarmos o SUS.
  • Editor: Rio de Janeiro: Associação Brasileira de Saúde Coletiva
  • Idioma: Português

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